Uma das discussões mais acaloradas do ano passado no Congresso Nacional, a Lei de Abuso de Autoridade (nº 13.869) começa a valer para todos os agentes públicos do país a partir desta sexta-feira (3).
Dentre as medidas da nova lei estão a punição de agentes por decretar condução coercitiva de testemunha ou investigado antes de intimação judicial; promover escuta ou quebrar segredo de justiça sem autorização judicial; divulgar gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir; continuar interrogando suspeito que tenha decidido permanecer calado ou que tenha solicitado a assistência de um advogado; interrogar à noite quando não é flagrante; e procrastinar investigação sem justificativa (veja a íntegra abaixo).
Promulgada em setembro, depois de dois anos de debates, essa legislação substitui uma já existente, de 1965, que era exclusiva para o poder Executivo.
O novo texto expande as condutas descritas como abusivas na legislação anterior e estabelece que seus dispositivos se aplicam a servidores públicos e autoridades, tanto civis quanto militares, dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e também do Ministério Público (MP).
No total, 53 condutas foram definidas inicialmente como abusos de autoridade. O presidente Jair Bolsonaro tentou vetar 23, porém, 15 acabaram restauradas ao texto após análise dos parlamentares.
Assim, a lei define que 45 condutas poderão ser punidas com até quatro anos de detenção, multa e indenização à pessoa afetada. Em caso de reincidência, o servidor também pode perder o cargo e ficar inabilitado para retornar ao serviço público por até cinco anos.
A lei ressalta, no entanto, que só ficará caracterizado o abuso quando o ato tiver, comprovadamente, a intenção de beneficiar o autor ou prejudicar outra pessoa. A mera divergência interpretativa de fatos e normas legais (a chamada hermenêutica) não configura, por si só, conduta criminosa.
Apesar de não ter caráter retroativo, a tramitação da lei foi acelerada neste ano após revelações de conversas entre integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato com membros do judiciário, como o atual ministro da Justiça, Sergio Moro, obtidas pelo site The Intercept Brasil.
A medida, inclusive, foi avaliada como uma reação do mundo político à operação, uma vez que diversos artigos dão margem para criminalizar condutas que têm sido praticadas em investigações no país, como a condução coercitiva sem autorização judicial e grampos em escritórios de advogados de defesa.
Segundo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o objetivo da medida é evitar que agentes públicos “passem de suas responsabilidades”.
Para o advogado criminalista Fernando Parente, a nova lei replica definições da anterior e não deve ter potencial de atrapalhar os processos de investigação.
“A legislação não vai atrapalhar a Lava Jato. Não vai impedir juiz de decidir, não vai impedir promotor de acusar ninguém, muito ao contrário. Até porque muitos crimes que nela estão previstos exigem o dolo, ou seja, tem de ter a vontade de abusar, de causar a finalidade que o crime exija”, diz.
Ao longo do ano, diversas associações de juízes e promotores criticaram a legislação, afirmando que suas definições abrem a porta da impunidade.
Em uma carta aberta divulgada em outubro, a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público, que reúne 40 mil profissionais, disse que a lei “atinge e inibe o poder-dever de investigar, processar e julgar autores de crimes e de infrações civis e trabalhistas”.
Por considerar vagos os artigos da legislação, o Ministério Público de São Paulo criou um grupo de trabalho e desenvolveu um manual com parâmetros para que os promotores evitem punições no âmbito da lei.
Crimes punidos com detenção de seis meses a 2 anos
Não comunicar prisão em flagrante ou temporária ao juiz
Não comunicar prisão à família do preso
Não entregar ao preso, em 24 horas, a nota de culpa (documento contendo o motivo da prisão, quem a efetuou e testemunhas)
Prolongar prisão sem motivo, não executando o alvará de soltura ou desrespeitando o prazo legal
Não se identificar como policial durante uma captura
Não se identificar como policial durante um interrogatório
Interrogar à noite (exceções: flagrante ou consentimento)
Impedir encontro do preso com seu advogado
Impedir que preso, réu ou investigado tenha seu advogado presente durante uma audiência e se comunique com ele
Instaurar investigação de ação penal ou administrativa sem indício (exceção: investigação preliminar sumária devidamente justificada)
Prestar informação falsa sobre investigação para prejudicar o investigado
Procrastinar investigação ou procedimento de investigação
Negar ao investigado acesso a documentos relativos a etapas vencidas da investigação
Exigir informação ou cumprimento de obrigação formal sem amparo legal
Usar cargo para se eximir de obrigação ou obter vantagem
Pedir vista de processo judicial para retardar o seu andamento
Atribuir culpa publicamente antes de formalizar uma acusação
Crimes punidos com detenção de um a quatro anos
Decretar prisão fora das hipóteses legais
Não relaxar prisão ilegal
Não substituir prisão preventiva por outra medida cautelar, quando couber
Não conceder liberdade provisória, quando couber
Não deferir habeas corpus cabível
Decretar a condução coercitiva sem intimação prévia
Constranger um preso a se exibir para a curiosidade pública
Constranger um preso a se submeter a situação vexatória
Constranger o preso a produzir provas contra si ou contra outros
Constranger a depor a pessoa que tem dever funcional de sigilo
Insistir em interrogatório de quem optou por se manter calado
Insistir em interrogatório de quem exigiu a presença de um advogado, enquanto não houver advogado presente
Impedir ou retardar um pleito do preso à autoridade judiciária
Manter presos de diferentes sexos na mesma cela
Manter criança/adolescente em cela com maiores de idade
Entrar ou permanecer em imóvel sem autorização judicial (exceções: flagrante e socorro)
Coagir alguém a franquear acesso a um imóvel
Cumprir mandado de busca e apreensão entre 21h e 5h
Forjar flagrante
Alterar cena de ocorrência
Eximir-se de responsabilidade por excesso cometido em investigação
Constranger um hospital a admitir uma pessoa já morta para alterar a hora ou o local do crime
Obter prova por meio ilícito
Usar prova mesmo tendo conhecimento de sua ilicitude
Divulgar material gravado que não tenha relação com a investigação que o produziu, expondo a intimidade e/ou ferindo a honra do investigado
Inciar investigação contra pessoa sabidamente inocente
Bloquear bens além do necessário para pagar dívidas
(Com informações da Agência Senado)
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